«Portugal gosta de viver de ilusões. Quem ler os jornais ou vir as televisões, descobrirá que tudo se vai resolver neste rectângulo à beira-mar plantado no dia em que se cortar nas despesas do Estado. Dos mais sisudos “senadores” aos mais azougados repórteres, passando por atarantados deputados, tudo se resolve com um Estado mais pequeno. Ou seja, parece existir em Portugal um enorme consenso “neoliberal”.
Nada mais enganador. Primeiro, porque já se está a cortar imenso na despesa do Estado mas isso não tem chegado. Depois porque a esmagadora maioria dos que exigem cortes discordam de todo e qualquer um dos cortes em concreto.
Na semana passada, o presidente do BPI, Fernando Ulrich, surpreendeu muita gente ao declarar que devia ser motivo de orgulho para Portugal “que a despesa primária, sem juros, e sem medidas extraordinárias, tenha passado de 83,5 mil milhões de euros em 2010, para pouco mais de 70 mil milhões de euros” em 2012. O banqueiro citou aqueles números para responder ao Financial Times, mas, na verdade, estava a dirigir-se à cacofonia que parece ocupar todo o nosso espaço público. Sem surpresa, a generalidade dos órgãos de informação dedicou-lhe uma breve nota de rodapé: convém não estragar a narrativa estabelecida.
No entanto, estamos a falar de números impressionantes. O corte na despesa pública, sem juros da dívida, foi de 13,5 mil milhões de euros em dois anos. Desses, 5,7 mil milhões foram em despesas de investimento e o restante, 7,8 mil milhões, foi na chamada despesa corrente primária. 7,8 mil milhões é quase quatro vezes o valor do corte dos dois subsídios aos funcionários públicos. 7,8 mil milhões é também mais do que todos os juros que vamos pagar este ano (7,5 mil milhões) e é quase tanto quanto o que se gastou em educação em 2011 (8,2 mil milhões).
Muitos destes cortes afectaram já a vida dos portugueses. O corte no investimento, por exemplo, levou à paragem de muitas obras públicas – e ainda bem, digo eu -, e isso está a ter importantes consequências nesse sector da economia. Mas não só. Vejamos também o que aconteceu entre 2011 e 2012 nos principais ministérios comparando a execução orçamental até Agosto. O Ministério da Defesa cortou mais de 200 milhões de euros – a consequência vimo-la na manifestação de sábado passado, com as associações de militares a marcharem ao lado da CGTP. O Ministério da Saúde gastou menos 500 milhões de euros, apesar de ter pago dívidas em atraso – mas todos sabemos como a redução de custos neste sector tem gerado protestos e manifestações. E o Ministério da Educação já tinha conseguido cortar, nesses oito meses, 750 milhões de euros. Até os encargos líquidos do Estado com as PPP caíram 52 por cento no primeiro semestre, uma poupança de 586 milhões de euros.
É claro que, para conseguir estes cortes, foi necessário reduzir os salários dos funcionários públicos, fechar serviços de saúde que eram redundantes e escolas com poucos alunos, tal como dispensar professores que ficaram sem turmas para dar aulas, bloquear as progressões nas carreiras, acabar com os subsídios às empresas, tudo medidas que afectaram corporações específicas e suscitaram a habitual onda de críticas contra os “cortes cegos”. Mais: sempre que se anuncia alguma racionalização, mesmo que tímida, mesmo que mal feita e insuficiente, como a que foi anunciada para as fundações, salta logo um coro de protestos a justificar o carácter indispensável do respectivo gasto público.
Mesmo assim, estamos longe dos objectivos. Este ano estão a ser cortados mais de quatro mil milhões de euros na despesa corrente primária, para o ano o ministro das Finanças já anunciou que será necessário cortar outros quatro mil milhões. Se alguém souber como se cortam sete mil milhões em vez de quatro, que avance: assim evitaremos o assalto fiscal via IRS.
Portugal tem vivido na ilusão de que todos estes cortes ainda não ocorreram e que, portanto, basta realizá-los para resolvermos os nossos problemas. E também na ilusão – que, de resto, foi alimentada pela actual maioria durante a última campanha eleitoral – de que tudo se pode fazer tocando apenas nas gorduras do Estado, nas PPP ou nas fundações. Não era verdade e não é verdade, pois tudo o que se fizer nessa área, sendo muitíssimo importante (até por razões políticas), pesa relativamente pouco quando olhamos para os grandes números. Basta pensarmos que, dos quase 74 mil milhões de euros que o Estado gastou em 2010 (sem juros nem investimento), mais de 80 por cento foram para pagar os salários dos funcionários e as pensões sociais.
Todos estes números são públicos, mas mesmo assim há quem insista em ignorá-los e, sobretudo, quem continue a negar o essencial. Isto é, que os níveis de despesa públicos atingidos em 2009 e 2010 – mais de 88 mil milhões de euros – não só eram incomportáveis para uma economia como a nossa, como só foram possíveis por décadas de políticas erradas, muito populismo e uma enorme falta de coragem.
Em Portugal, ganharam-se muitas eleições a aumentar desmesuradamente os funcionários públicos – ganhou-as Cavaco, ganhou-as Guterres, ganhou-as Sócrates. Poucos na altura se incomodaram com isso, quase todos os “senadores” que hoje saltitam de estúdio de televisão em estúdio de televisão colaboraram activamente com isso.
Em Portugal, vamos quase em quatro décadas sem alterar devidamente a lei das rendas, por endémica falta de coragem política, e isso contribuiu muito para distorcer as prioridades do sistema financeiro, que se especializou numa actividade não produtiva – o crédito à habitação – e nunca financiou devidamente a economia. Quantos “senadores” não foram cúmplices desta inacção?
Em Portugal, nunca nenhum governante deixou de sonhar ser uma espécie de Fontes Pereira de Melo moderno, espalhando auto-estradas ou semeando rotundas, criando dívida directa ou dívida através de PPP, assim contribuindo para que, só em 2007, cerca de 70 por cento do crédito bancário total concedido a empresas e a particulares fossem destinados ao cluster da construção civil e imobiliário. Não surpreende que, com estes comportamentos e distorções, a dívida tenha crescido e a economia estagnado.
Em Portugal, os governantes sempre gostaram de subsidiar as empresas, e estas de ser subsidiadas, e, em Portugal, são raros os “senadores” que não tiveram sinecuras em alguma das grandes empresas do regime, ou em alguma das instituições públicas ou semipúblicas onde os salários não estão limitados pelo desagradável tecto imposto aos ministros.
É por todas estas e muitas outras que tenho cada vez menos tolerância para os conselhos de sapiência de “senadores” que no passado criaram rendas e hoje dizem que temos de acabar com elas; que querem cortar nas despesas públicas mas não só nunca o fizeram como, nalguns casos, beneficiam de pensões superiores a 10 mil euros mensais; que foram incapazes de fazer reformas decentes, do arrendamento à lei do trabalho, e agora continuam a criticar as reformas; que inventaram e encheram o país de PPP mas agora estão muito preocupados com a corrupção; que pedem cortes na despesa mas só sabem referir as viagens e as ajudas de custo.
Portugal não chegou onde chegou por ser uma barca que navegou sem piloto: houve pilotos, houve responsáveis, houve muita gente que contribuiu, por acção ou omissão, para chegarmos aos intoleráveis 88 mil milhões de despesa pública (e 7,5 mil milhões de despesas anuais com os juros da dívida). Muita dessa gente tem hoje cabelos brancos e continua a achar que devia estar no Governo, como se esse fosse um qualquer direito divino que lhe assistisse. Até o vai dizer a programas de televisão.
Mas para pior já basta assim. Para esbulho fiscal já chega o anunciado, não precisamos ainda de mais impostos para pagar ainda menos cortes nas despesas. Por isso só desejo que a providência nos livre de quem nos trouxe até aqui e nem isso é capaz de admitir.»