2006-05-19

ESTA FEBRE DO FUTEBOL QUE AFECTA TANTA GENTE ... AGORA EM ÉVORA!

A discussão local em torno do futebol, envolvendo os mais emotivos e obcecados aos mais racionais e distantes, passando pelos moderados na razão e coração, preencherá o quotidiano alentejano em geral e eborense em particular, durante as próximas duas semanas.
De forma desprendida em relação à reacção colectiva e sem qualquer ingerência na dimensão política de análise, atrevo-me a recordar aqui partes de algumas das peças já escritas noutros tempos, sobre o fenómeno, encarado apenas do ponto de vista das ciências sociais, a partir de pesquisas direccionadas essencialmente à interpretação do papel do futebol enquanto meio instrumental de afirmação de identidade social.
Na semana em que escrevo, o quotidiano da vida portuguesa foi quase totalmente dominado pelo jogo de futebol para disputar a final da taça EUFA, antes e depois do mesmo acontecer. A identidade nacional saiu reforçada com o resultado conseguido, mas, mais reforçada saiu ainda a identidade social da região norte do país, para a qual o futebol tem sido o instrumento fundamental da sua afirmação.
É possível identificar a influência de vários vectores de diferenciação social dos desportos, conferindo aos mesmos um carácter simbólico consonante com os vários tipos de capital (económico, cultural, …) que as classes sociais detêm, traduzindo-se, na prática, numa diferenciação social dos gostos e das práticas desportivas: desportos colectivos ou individuais, autonomia ou regramento, uso do corpo e da força física ou da criatividade, etc. O futebol é, no entanto, um desporto de carácter universal, seduzindo praticantes e adeptos de todas as classes sociais, independentemente do volume ou da estrutura do respectivo capital, garantindo uma pluralidade de usos e interpretações para quase todos os gostos e feitios.
A identificação clubística assenta em praticamente tudo, menos em bases classicistas, antes as diluindo, desempenhando um papel político de consolidação de identidades sociais que extravasam as divisões de classe. Preenche ainda funções de terapia social, enquanto válvula de escape das tensões, agressividades e ressentimentos da vida quotidiana, aliviando as ansiedades e as frustrações (o stress) que preenchem o dia a dia do homem moderno, mas também de animação da monotonia quotidiana (anti-depressivo). No fundo, o futebol ocupa uma boa parte do imaginário da nossa sociedade e marca o ritmo do quotidiano.
Mas, no Porto, o futebol representa ainda mais do que tudo isso: representa o instrumento de afirmação de uma identidade social regional que se consolida em torno de um clube no qual todo o norte se revê em boa medida. Gritar "Porto" não significa apenas exaltar o FCP, mas também o vinho com o mesmo nome e toda uma região, identificada simbolicamente com a cidade. Ser do Porto ou do FCP é mais do ser apreciador de bom futebol, amante do futebol, simpatizante de um clube de futebol: é uma maneira de estar na vida, que traduz uma expressão cultural claramente marcada por traços distintivos (com ânsia de afirmação e reconhecimento) do todo hegemónico nacional e, principalmente, do elitismo urbano e metropolitano da antiga capital de um império já desaparecido. Bourdieu defendia convictamente que toda a expressão linguística é um acto de poder, mesmo que dissimulado, pelo que as estruturas mentais e simbólicas que estruturam o discurso objectivo veiculado pela pronúncia do norte, consumam um sentimento subjectivo de identificação e de pertença a uma região que preza como nenhuma outra, em Portugal, o espírito empreendedor, inconciliável com a frustração decorrente dos malefícios do histórico centralismo político e administrativo, perpetuado pelo Estado Novo e ainda hoje marcante. O FPC representa, neste contexto, o veículo adequado à aglutinação dos valores colectivos, garante da afirmação de uma identidade regional que se quer ver reconhecida nos planos nacional e internacional, contra o cosmopolitismo "sulista e elitista" que tende a equiparar Lisboa a Portugal e a paisagem provinciana tudo o resto. Quinta, 22 de Maio de 2003 - 21:39 Fonte: Noticias Alentejo - Jornalista :
Passados 2 anos sobre o acontecimento que muitos dizem ter mudado o mundo, ou pelo menos ter aprofundado as divergências entre as sociedades ocidental e o Islão, os ataques terroristas estão ultrapassados mas não esquecidos, em especial pelo crescimento da insegurança resulta de, a qualquer momento, novas acções poderem ser desencadeadas por fundamentalistas islâmicos. Quando se fala em fundamentalismos, tendemos apenas a atribui-los ao Islão, em consequência da não separação entre o poder político, a organização social e, a religião.
Mas, a aceitação e defesa de um conjunto de princípios ortodoxos tidos por verdades fundamentais e indispensáveis à formação de uma certa consciência (individual ou colectiva), também se observa nas sociedades ocidentais, nomeadamente na europeia, particularmente nos países do sul, ainda hoje marcados, em termos culturais, pelo prolongado predomínio dos regimes políticos autoritários e do dogmatismo religioso da igreja católica.
Habituadas e necessitadas de princípios rígidos que ofereçam segurança interior e estabilidade na organização social, as sociedades europeias do sul, entre elas Portugal, têm vindo a (re)inventar, nas últimas décadas, mecanismos de organização da centralidade dos seus quotidianos que tendem a assumir formas obsessivas, entre elas o futebol.
Vejamos:
1. Cada jornada de futebol das ligas nacionais e internacionais institucionalizou-se, em Portugal, com carácter ritualizante: as discussões iniciam-se antes de a semana chegar a meio, aquando dos primeiros treinos e das correspondentes convocatórias dos jogadores, alimentam-se durante a mesma com os desempenhos dos jogadores nos treinos e culminam, no final, com as apostas no totobola e totogolo, ou ainda com a ida ao estádio ou a assistência à transmissão televisiva dos jogos. O ritual continua nos primeiros dias da semana seguinte, com as discussões em torno dos resultados, dos golos marcados, dos casos polémicos, dos erros das arbitragens e por aí fora, matérias que servirão de entretenimento até metade da semana, altura em que o ciclo se reinicia.
2. O futebol serve de início a todo o tipo de conversação com desconhecidos, ao balcão ou à mesa do café, substituindo o tradicional tema da meteorologia, e de alimentação a disputas verbais mais incendiadas entre conhecidos, amigos e familiares, chegando mesmo a referenciar as opções de amizades e inimizades produzidas e alimentadas no quotidiano. O fanatismo e a intolerância não são fenómenos esporádicos, observando-se a inimaginável simultaneidade de opiniões contraditórias sobre o mesmo facto, assumidas hipocritamente como objectivas e verdadeiras. O futebol serve de escapatória à monotonia da vida quotidiana e de uma cada vez menor implicação pessoal no trabalho, mas também desenvolve um efeito de catarse e alívio das tensões produzidas pelo modo de vida moderno.
3. O fenómeno atravessa e penetra todas as classes sociais, que se desiludem da política, participam cada vez menos na eleição dos seus representantes no Parlamento e dos que decidem o futuro dos concelhos onde residem e onde viverão os seus filhos, ou ainda em referendos sobre matérias tão importantes como o aborto ou a regionalização, mas que não parecem afectados no seu interesse com o funcionamento do futebol nem com a actuação já raramente convencional e transparente dos dirigentes dos clubes e SAD's, nem com a promiscuidade com os políticos. Estes últimos, servem-se eles próprios dessa obsessão das massas, sendo dos poucos factores que parecem ainda despertar algum interesse junto do eleitorado, aquando das campanhas eleitorais e das respectivas promessas formuladas: revela-se mais mobilizador da angariação de preferências eleitorais a construção de um estádio municipal de futebol ou a realização de um campeonato europeu, do que as opções estratégicas para o futuro de um concelho, a construção de escolas e hospitais, ou de projectos estruturantes para o desenvolvimento do país.
4. Nos parques de recreio das escolas, não existem mais equipamentos desportivos do que os campos de futebol e, para aqueles que não têm apetência ou têm preferências por desportos que exijam maior desempenho intelectual e menor limitação à força bruta do corpo, não restam opções, nem são valorizadas ou incentivadas as suas escolhas, quando as fazem. O sonho com o estrelato das vedetas milionárias inicia-se logo na infância, valorizando toda uma elite simbólica que personaliza valores ou aspirações facilmente cativantes dos jovens (modos de vida, estrelato, acesso a bens materiais…), exercendo influência nos hábitos, atitudes e comportamentos dos mesmos.
5. Até há relativamente pouco tempo, não se dispensou a devida importância ao estudo da influência deste tipo de elites, por estarem mais individualizadas e não existir um laço organizativo entre elas. No entanto, o relevo dos meios de comunicação social nas sociedades modernas e o seu consequente efeito de imagem e mobilização de massas, vieram dar maior importância à influência das mesmas, em particular no meio desportivo, que dispõe de vasta imprensa especializada e grande capacidade de mobilização de massas no âmbito das audiências televisivas.
6. As massas projectam as suas aspirações nos seus heróis, levando os atletas a converterem-se em símbolos de uma cidade, região ou país, ou de qualidades como a combatividade, o esforço, a capacidade de sofrimento ou a vontade de superação própria. Apesar de algumas das elites simbólicas (ex. dos meios artístico, da literatura ou da moda) serem em regra mais instáveis e transitórias que outro tipo de elites, como o são os valores ou modas que representam, tal tendência parece não ter acolhimento no futebol. Apesar de as multidões se revelarem vulneráveis à mensagem que lhe é transmitida, facilmente renegando hoje os que aplaudiram ontem, a preferência clubística, a participação no espectáculo e a centralidade do futebol na vida quotidiana parecem cada vez mais reforçadas, independentemente dos protagonistas individuais, que a todo o momento se renovam.
7. A última estrela do imaginário futebolístico português é o jovem madeirense Cristiano Ronaldo, cujo nome parece extraído de uma das telenovelas brasileiras que toda a família certamente não perderá nos horários nobres do serão televisivo, transportando para uma realidade virtualizada as aspirações, longínquas da sua vida quotidiana, pois tais novelas apontam claramente como próxima a possibilidade de um qualquer desconhecido de uma degradante favela brasileira saltar de um estado miserável de vida para a fama, o estrelato e a fortuna, bafejado por qualquer sorte milagreira, ou pela aposta no futebol, sem qualquer esforço de construção do seu percurso escolar e sócio-profissional.
8. Um estudo norte-americano publicado em Agosto deste ano na revista "New Scientist" revelava que 1 em cada 10 pessoas é viciada em celebridades, vício esse que pode conduzir a problemas de depressões, ansiedade e psicoses, podendo mesmo chegar-se a um estado de patologia marcada por comportamentos perigosos ou até mesmo criminosos. Nada melhor para ilustrar a susceptibilidade deste estado de idolatria do que o filme americano "Adepto Fanático", um thriller psicológico de alta tensão com Robert De Niro e Wesley Snipes, no qual um adepto fanático de baseball arrasta o melhor jogador da sua equipa para um pesadelo alucinante. Bobby Rayburn tem uma vida deplorável: foi despedido do seu emprego e a sua ex-mulher quer impedi-lo de ver o filho. A sua única felicidade na vida é o Baseball, a equipa dos "Giants" e o jogador Gil Renard. Bobby é um adepto obsessivo e demencial que vai ao ponto de assassinar um jogador dos "Giants" para Gil, cujo desempenho na equipa tem sido medíocre, poder recuperar a sua velha camisola número 11 e voltar a exibir o seu talento. Porém, Gil não encara o Baseball como a coisa mais importante da sua vida e Bobby decide obrigá-lo a pensar como ele: rapta-lhe o filho para o obrigar a jogar melhor. Trata-se de um thriller psicológico sobre as criminosas e demenciais iniciativas de um adepto fanático do Baseball, de uma equipa e do seu jogador vedeta, que não se detém perante o homicídio, a chantagem ou o rapto para ver a sua equipa ganhar. No caso, é o desporto que serve de pano de fundo a esta história perturbadora sobre o psicótico culto da celebridade, que na América pode atingir níveis absolutamente desconcertardes e perversos.
9. Resultados de outras investigações, em Inglaterra, continuam ainda assim a relativizar os efeitos desta dimensão, revelando que, seguir atentamente a vida das estrelas só poderá dar mau resultado se isso se tornar uma obsessão, algo que, garantem, acontece em raríssimos casos (1%), pelo que o "síndrome das celebridades", caracterizado pelo dispêndio de vários horas a ler artigos ou a ver imagens e tirar modelos das celebridades, pode até trazer sucesso e ser vantajoso para a vida das pessoas que as seguem.
10. O pai da nova estrela madeirense referia ao jornal "Correio da Manhã" em Agosto que «O Cristiano sempre foi um rapaz muito decidido, por isso, penso que este seja o caminho certo. Estou muito orgulhoso, como o resto da sua família (…)». É natural que a família sinta orgulho no filho que se tornou no jogador de 18 anos mais bem pago, deslumbrada pelo acesso repentino a níveis de capital económico antes inimagináveis. Mas, para além deste, que outros tipos de capital marcam a formação daquele jovem? Que importância foi atribuída ao capital cultural (aquisição de competências escolares e profissionais), cada vez mais determinante nesta sociedade, marcada pelo capitalismo informacional e pela sociedade do conhecimento, tendo por centralidade a capacidade de adquirir e interpretar informação com vista à produção de conhecimento?
11. Aceitando que adorar e respeitar pessoas que se distinguem por alguma razão é algo que vem dos tempos da pré-história, e que se adoram hoje celebridades cuja fama e fortuna é desejada por aqueles que as seguem, a questão deve colocar-se ao nível das hipóteses que têm os seguidores em desenvolver as características estéticas dos modelos, de representação dos actores de Hollywood, ou de jogar futebol como o Cristiano Ronaldo. Nesta sociedade por alguns apelidada de pós-moderna, o trabalho ainda não deixou de ser central na atribuição do estatuto social, pelo que o capital sócio-económico dos indivíduos é ao mesmo tempo resultado do tipo e prestígio das profissões e do uso e combinação feita com outro tipo de capital: o cultural. Em consequência, a aquisição de competências escolares e profissionais proporcionada pelo sistema de educação-formação é, cada vez mais, determinante da aquisição de posições na estrutura social formal e informal.
12. Tal exige, no entanto, um esforço e um investimento ao longo de anos, a rentabilizar no longo prazo, ao qual a sociedade mediática de hoje, paradoxal e hipocritamente não retribui compensação, sendo menos valorizada a atribuição do prémio Leonardo da Vinci, pela Sociedade Europeia para a Formação de Engenheiros a um português pelo reconhecimento das suas obras nos contextos nacional e europeu, do que a ilusória conquista dos 15 minutos de fama preconizados por Andy Warhol em qualquer Big Brother ou clube de futebol, ainda que não se possuam obra feita para reconhecimento.
13. A prová-lo está o facto de Alberto João Jardim ter transformado a jovem vedeta madeirense no embaixador da região no estrangeiro, como se não tivesse mais nenhuma imagem de marca que simbolizasse outras vias de aquisição do estrelato por obra feita. Joe Berardo, empresário de sucesso e personificador da capacidade de iniciativa não parece tão atractivo para o efeito, vá-se lá saber porquê. Não estranha pois que nenhum político português tenha procurado aparecer frente aos media ao lado de Nuno Viegas, jovem português de 27 anos, finalista de Engenharia Biotecnológica da Universidade do Algarve que engendrou uma maneira de usar a Estação Espacial Internacional para ajudar a desenvolver novos antibióticos que possam combater mais eficazmente as bactérias em terra, recorrendo à microgravidade e apresentou a sua ideia num com concurso promovido pela Agência Espacial Europeia, tendo chegado à final do mesmo, entre 100 projectos aceites, apesar de não o ter ganho.
14. O que me incomoda neste cenário é pois a não valorização ou estímulo da sociedade portuguesa ao esforço de aquisição e desenvolvimento de competências científicas por este jovem, nem à sua aplicação criativa e inovadora na produção de conhecimento técnico, ao contrário do estrelato atribuído a Cristiano Ronaldo, que aos 11 anos abandonou a escola para jogar futebol sendo, escandalosamente valorizadas pelos media as suas fugas ao estudo em busca de um espaço de jogo.
15. Referia a edição do jornal "Correio da Manhã" de 25.08.2003 que Cristiano Ronaldo «Mais que tudo na vida queria ser jogador de futebol, mesmo que isso lhe custasse o isolamento da família, um inferno na adaptação a Lisboa, a hipoteca de um futuro académico. (…) qualquer preço era justo, desde que a recompensa fosse chegar aos relvados. Tinha 9 anos». Eis um desafio para pais e professores, porque este "modelo" ou símbolo que é vendido aos jovens e que eu não quero para o meu filho, resulta não apenas do sistema educativo, para onde tendem a ser remetidas quase todas as culpas.
16.O enraizamento cultural das causas do insucesso escolar, do abandono precoce da escola e da fraca motivação e qualidade de formação dos jovens que chegam à Universidade e ao mercado de trabalho, revela-se em dimensões como esta, fazendo lembrar a letra da canção dos Rio Grande: «Mestre-escola diga lá se for capaz, faz-me falta ouvir outra opinião …». Quinta, 11 de Setembro de 2003 - 14:54 Fonte: Noticias Alentejo - Jornalista

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