2007-12-26

GERAÇÃO À RASCA COM O RENDIMENTO

[Gomes, Ana (2007, 23 Dez). Os "Mileuristas". O desencontro entre as elevadas qualificações e os salários. Pública, pp. 70-71]

- Não têm poupanças, não têm casa, não têm carro, não têm filhos
- O fenómeno da geração dos mil euros foi pretexto para um livro da escritora espanhola de origem galega e nascida no País Basco, Espido Freire.
Editado pela tiispânica Ariel e sem tradução portuguesa no mercado nacional, na introdução do livro "Los mileuristas", a autora considera-se ela própria parte desta geração que classifica de encalhada. Espido Freire considera ainda que se trata de um grupo de pessoas que vive num permanente paradoxo.
Defende que se trata de uma geração:
• Conformista mas desesperada
Qualificada mas sem expectativas
• Consumista mas pobre
• Desengajada mas com gestos de identidade comuns
Já lá vão os tempos do entusiasmo universitário quando as temporadas passadas a queimar as pestanas eram tidas como meio caminho andado para uma vida financeira estável. Hoje, já se passaram uns anos de contratos a termo, que se seguem teimosamente uns atrás dos outros, para não falar dos recibos verdes que, volta e meia, se transformam em simulacro de contrato ainda mais precário.
Passados dois ou dez anos de darem início à actividade laboral, estes ex-universitários guardam um canudo que lhes assegura o grau de licenciados, mestres ou mesmo doutores mas que não lhes garante um ordenado condizente.
São os "mileuristas", geração presa a um limbo de uma vida adolescente, que gozam como lhes permitem os cerca de mil euros de remuneração mensal.
Nem só o número escrito no cheque do salário define os "mileuristas".
São jovens com idades a rondar os trinta anos, nascidos na Europa entre meados da década de 1960 e inícios dos anos oitenta. Filhos da geração dos "babyboomers", cresceram sob a máxima que os estudos eram o mais eficaz meio para usufruir de uma vida adulta financeiramente desafogada.
Os progenitores, com mais ou menos dificuldades, lutaram para que os filhos desfrutassem das liberdades e escolhas que as jovens democracias permitiam. As mesmas que não tinham podido gozar na sua juventude.
E os filhos obedeceram. Lá completaram a formação superior, somando frequentemente à licenciatura mestrados, pós-graduações ou mesmo doutoramentos. Para engrossar ainda mais o currículo, fizeram cursos de línguas, de informática, formações especializadas nas áreas em que pretendiam trabalhar e ateliers diversos que reforçassem o seu "know how" e cultura geral. Hoje, não resistem a perguntar-se: "para quê?".

Apesar de não ter origem portuguesa, a expressão "mileurista" serve como uma luva a milhares de trintões nacionais.

Mas foi na vizinha Espanha que nasceu o termo com que se identifica toda uma geração residente nos países da Europa mais ocidental.

Tudo começou com uma carta que a jovem publicitária Carolina Algualcil, residente em Barcelona, dirigiu ao jornal espanhol "El Pais". O calendário marcava o ano de 2002 e o periódico não hesitou em publicar na íntegra a missiva que tinha por título "Sou mileurista". A carta foi o resultado da (in)digestão de uma passagem por Berlim, viagem onde Carolina Algualcil constatou as diferenças entre os estilos de vida e tabelas salariais que vigoravam entre companheiros de geração das duas cidades europeias.

Assim descrevia a jovem publicitária na sua carta as características dos "mileuristas" espanhóis. "Gastam mais de um terço do seu salário no arrendamento de casa. Não têm poupanças, não têm casa, não têm carro, não têm filhos, vivem o momento... Às vezes é divertido. Mas já cansa." É certo que este "modus vivendi" que parece permanecer eternamente em vésperas da idade adulta apesar do passar dos anos é determinado por um conjunto de factores para além da matemática financeira. Mas a magra conta bancária é uma forte ditadora nesta conjuntura. Os "mileuristas" estão longe do salário mínimo nacional mas também se posicionam muito aquém do conforto económico que as suas qualificações prometiam.

São uma nova classe social, ensinada a aproveitar o dia-a-dia e que não quer abdicar de uma certa qualidade de vida que aprendeu a usufruir em casa dos pais. Por isso, muitas vezes adiam a saída do lar paternal, desalentados pelo elevado valor de venda das casas e pelas exorbitantes quantias do arrendamento imobiliário. Adiam igualmente a chegada de filhos, meta considerada alcançável apenas depois de atingida alguma estabilidade económica que tarda em bater à porta. E de adiamento em adiamento, a juventude vai ficando para traz e o futuro dourado que as habilitações académicas prometiam nunca mais chega.

As características desta geração de infância afortunada e adolescência permanente explicam parte do fenómeno a que se somam factores como a precariedade laboral e o excesso de licenciados que o mercado de trabalho não consegue absorver.

E nem o mais longínquo futuro lhes sorri, numa altura em que se multiplicam as vozes que alertam sobre a falência do Estado Providência e a possibilidade da geração hoje pelos trinta anos poder vir a não usufruir das pensões de reforma a que teriam direito com base nos descontos que fazem mensalmente.

São os "mileuristas", geração encalhada na adolescência e com a idade madura comprometida.

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